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Higiene íntima: tão simples quanto escovar os dentes

Nesta entrevista dada para o Jornal do Comércio, o ginecologista Paulo César Giraldo combate mitos e tabus que cercam temas relacionados à higiene íntima

“Higiene íntima deve ser tão disseminada quanto a bucal.” Pronunciada com a força de uma sentença, a afirmação é do professor titular de ginecologia da Universidade de Campinas (Unicamp), Paulo César Giraldo. “Se aprendemos a escovar os dentes sempre depois das refeições, por que não cuidar do aparelho genital da mesma maneira?”, questiona. Há quase três décadas, o médico investiga as infecções genitais femininas. Para entender melhor o ecossistema dessa parte tão delicada do corpo, o especialista estudou imunologia vaginal. Foi quando passou a encampar definitivamente a bandeira da prevenção. Nesta conversa com a editora Mona Lisa Dourado, Paulo Giraldo defende uma mudança na atitude de especialistas, mais habituados a tratar doenças que ensinar o paciente a evitá-las. O ginecologista ainda esclarece dúvidas e combate mitos e tabus que cercam o tema.
JC – O senhor acredita que as mulheres realizam uma correta higiene íntima?
PAULO CÉSAR GIRALDO – Percebo que elas estão mais conscientes da necessidade de cuidar dessa região do corpo, mas falta muito para avançar nesse campo até conseguir o que se alcançou na área de higiene oral. Quase todo mundo se acostumou a escovar os dentes várias vezes ao dia, depois da refeição. Por que não carregar um kit também de higiene íntima?
JC – Mas os ginecologistas costumam orientar as mulheres nesse sentido?
GIRALDO – Infelizmente não muito. O médico foi formado para ser curador, não para falar de prevenção, o que é fundamental.
JC – Não seria também porque a região genital ainda é cercada de tabu?
GIRALDO – Claro. Não podemos deixar de considerar esse fator. Há muitos mitos relacionados à higiene íntima, que ainda está muito associada à vida sexual. E isso só dificulta a abertura e relação ao tema. O primeiro passo é entender o ecossistema vaginal e vulvar. Por exemplo, saber que o pH normal dessa região é ácido, o que impede a proliferação de bactérias. Nessa área, também há muitas células desprendidas, secreção, oleosidade e resíduo de urina e fezes, por isso a necessidade de uma higienização adequada. O problema é que não sabendo como fazer, muitas vezes exagera-se para mais ou para menos.
JC – O uso de papel higiênico é suficiente para fazer a higiene íntima depois de ir ao banheiro?
GIRALDO – Na verdade, o papel é o menos indicado, porque se desfaz e deixa pedaços entre as dobras. O ideal seria sempre lavar a região com água corrente, que tira 60% das impurezas, mais um produto que remova a gordura, e enxugar com uma toalha de algodão que não solte pelo. Na impossibilidade disso, pode ser usado um lenço umedecido sem perfume. Mas é preciso ter cuidado para não agredir a área. Isso porque o fato de haver ali células mortas, bactérias e glândulas que geram cheiro pode provocar proliferação bacteriana. Do mesmo jeito que a falta, o excesso de limpeza também é ruim, porque pode provocar ressecamento da vulva e da pele do entorno.
JC – E qual seria, então, o procedimento mais equilibrado?
GIRALDO – Realizar a limpeza três vezes ao dia: antes de sair de casa, mais ou menos na metade do dia e ao retornar pela noite. Vale considerar, no entanto, que mulheres submetidas a condições intensas de estresse, obesas ou em contextos específicos, como menstruação e puerpério, necessitam cuidar ainda mais da higiene íntima.
JC – Muita gente usa sabonetes bactericidas durante o banho, por acreditar que removem as bactérias de maneira mais eficiente. Eles fazem o mesmo efeito na vagina?
GIRALDO – Na verdade, não é recomendado. É que a área genital não deve ser estéreo, as bactérias ali são bem-vindas num ecossistema equilibrado. Usar bactericida não é bom porque pode provocar um desequilíbrio dessa população bacteriana benéfica.
JC – E quanto aos sabonetes íntimos específicos?
GIRALDO – Esses costumam estimular as bactérias benéficas e inibir as ruins.
JC – A depilação contribui para a higiene íntima?
GIRALDO – Hoje o pelo não é mais uma necessidade. A orientação é diminuí-lo, ou seja, manter o pelo curto, a meio centímetro. Isso evita reter impurezas, gerar traumas ou odores não naturais. Para depilar, é preciso tomar alguns cuidados, como soluções calmantes, chá de camomila e gelo, além de hidratar a região. Lâminas não são adequadas, porque cortam a pele.
JC – Em evento recente sobre saúde íntima, o senhor deixou a plateia de mulheres e homens surpresa quando recomendou o uso de hidratante na região íntima. Por que se deve incorporar esse hábito?
GIRALDO – Veja bem: primeiro, é preciso diferenciar as várias partes do aparelho genital. A vagina é área interna e naturalmente úmida. Mas a vulva, externamente, deve ser seca e hidratada. Trata-se de pele como a de qualquer outra região do corpo. O que diferencia é a suscetibilidade à mais trauma e umidade. Por isso, é possível sim usar o mesmo hidratante que a pessoa já identificou como adequado para si. Até os homens podem usá-lo na área externa do pênis.
JC – Ao contrário do que indica a maioria dos ginecologistas, uma pesquisa encomendada pela Johnson&Johnson à Unicamp, da qual o senhor participou, aponta que o uso de absorventes diários “respiráveis” não traria problemas ao ecossistema vaginal e vulvar. O que permitiu chegar a essa conclusão?
GIRALDO – Acompanhamos 54 mulheres em condições clínicas saudáveis e que passam cerca de oito dias fora de casa. As voluntárias usaram protetor diário durante 75 dias. Antes e depois do período de avaliação, colhemos material da vagina e da vulva, além de avaliar o pH e fazer exame ginecológico e cultura para verificar presença de fungos. O grande medo das mulheres era se tornarem mais propensas à candidíase ou vaginose bacteriana, assim como à irritação vulvar. No entanto, a flora bacteriana foi até um pouco mais favorável. Depois, tentamos identificar o porquê. O absorvente retira a umidade, sem deixar de ventilar. Publicamos os resultados no International Journal of Gynecology and Obstetrics. Vale salientar que no contrato assinado com a Unicamp há uma cláusula assegurando que as conclusões seriam publicadas ainda que fossem desfavoráveis.